Quando abortei a primeira vez achava que era um caso quase único. Sabia de uma situação ou outra semelhante, mas não mais que isso. Depois fui contando o que se tinha passado comigo e penso que não houve ninguém que não me tivesse dito que conhecia alguém que tinha passado pelo mesmo ou que tivesse vivido uma situação semelhante na primeira pessoa. Fui obrigada a concluir que a situação era comum, o que era incomum era falar-se sobre isso. Achei que se falava pouco sobre o aborto espontâneo porque quem vivia esta experiência preferia não a partilhar. Entretanto vivi um segundo aborto e começo a mudar de opinião. Desconfio que quase não se fala sobre o aborto não porque quem por ele passa não quer falar, mas porque os outros não querem ouvir. É algo que nada lhes diz, que é distante e, especialmente, é desagradável. Para além disso, quando o aborto é numa fase inicial, naquela fase em que os outros não vêem a gravidez, para esses outros a gravidez nunca existiu, pelo que, por muito próximos que sejam da mulher que abortou, nunca viram nem sentiram quem ela perdeu. Esta falta de compreensão e sensibilidade leva-os a não saber o que dizer e, sentindo-se na obrigação de dizer algo que não o mais honesto "não sei o que te diga", saem preciosidades com sabor a disparate aos ouvidos de quem abortou. Eu sei que não é dito por mal, mas não, eu não quero ouvir:
- de certeza que da próxima vez vai correr bem! (já vos provei que não é bem assim)
- a Maria Albertina, prima da Genoveva, amiga da Felisberta, abortou 197 vezes e à 198ª vez foi bem sucedida! (ah, pronto, já só me falta passar por 196 abortos, fico muito mais descansada)
- agora é tornar a treinar muito!, dito com um sorriso maroto no rosto (ainda bem que alguém me recorda do "como", das vezes anteriores foi por geração espontânea)
- tens que ter calma, a ansiedade não faz nada bem (da primeira vez nem sabia que estava grávida, de modo que esta é capaz de não encaixar muito bem no meu caso)
- antes agora que mais tarde (pronto, depois desta frase de sabedoria profunda sinto-me muito melhor)
- a minha prima Anastácia abortou dezenas de vezes, até que os médicos a aconselharam a desistir de tentar (haja quem nos anime!)
- podes sempre adoptar (o que eu gosto de pessoas com esperança!)
Aos ouvidos de quem abortou, estas frases só servem para minimizar a dor, é uma forma de dizer "esquece lá isso, já passou, bora lá voltar à vida normal". Lamento informar que ainda que continue de sorriso no rosto e de bem com a vida passei por dois abortos em pouco mais que meia dúzia de meses. Um aborto é muito mais do que a perda de uma criança, é a perda de um milhão de pequenas possibilidades. Isto é coisa para me fazer pensar em coisas em que nunca tinha pensado. E, garanto-vos, conheço-me muito bem e sei bem a capacidade de adaptação que tenho. Não sou de ficar a chorar pelos cantos, nem de ficar a lamentar o que passou. Mas, minha gente, eu não posso, nem quero, passar uma borracha em partes da minha vida, por muito difíceis que elas possam ser. Eu sou eu e as minhas circunstâncias, já Ortega y Gasset dizia.
Há dias dei comigo a recordar que pensei várias vezes ao longo da minha vida que poderia vir a ter dificuldade em engravidar (todas as mulheres pensam nisto, não?), mas nunca coloquei a hipótese de não conseguir levar uma gravidez até ao fim.