2.4.14

quando me apetece gritar escrevo, sempre foi assim, e assim continua

Quando abortei a primeira vez achava que era um caso quase único. Sabia de uma situação ou outra semelhante, mas não mais que isso. Depois fui contando o que se tinha passado comigo e penso que não houve ninguém que não me tivesse dito que conhecia alguém que tinha passado pelo mesmo ou que tivesse vivido uma situação semelhante na primeira pessoa. Fui obrigada a concluir que a situação era comum, o que era incomum era falar-se sobre isso. Achei que se falava pouco sobre o aborto espontâneo porque quem vivia esta experiência preferia não a partilhar. Entretanto vivi um segundo aborto e começo a mudar de opinião. Desconfio que quase não se fala sobre o aborto não porque quem por ele passa não quer falar, mas porque os outros não querem ouvir. É algo que nada lhes diz, que é distante e, especialmente, é desagradável. Para além disso, quando o aborto é numa fase inicial, naquela fase em que os outros não vêem a gravidez, para esses outros a gravidez nunca existiu, pelo que, por muito próximos que sejam da mulher que abortou, nunca viram nem sentiram quem ela perdeu. Esta falta de compreensão e sensibilidade leva-os a não saber o que dizer e, sentindo-se na obrigação de dizer algo que não o mais honesto "não sei o que te diga", saem preciosidades com sabor a disparate aos ouvidos de quem abortou. Eu sei que não é dito por mal, mas não, eu não quero ouvir:

- de certeza que da próxima vez vai correr bem! (já vos provei que não é bem assim)

- a Maria Albertina, prima da Genoveva, amiga da Felisberta, abortou 197 vezes e à 198ª vez foi bem sucedida! (ah, pronto, já só me falta passar por 196 abortos, fico muito mais descansada)

- agora é tornar a treinar muito!, dito com um sorriso maroto no rosto (ainda bem que alguém me recorda do "como", das vezes anteriores foi por geração espontânea)

- tens que ter calma, a ansiedade não faz nada bem (da primeira vez nem sabia que estava grávida, de modo que esta é capaz de não encaixar muito bem no meu caso)

- antes agora que mais tarde (pronto, depois desta frase de sabedoria profunda sinto-me muito melhor)

- a minha prima Anastácia abortou dezenas de vezes, até que os médicos a aconselharam a desistir de tentar (haja quem nos anime!)

- podes sempre adoptar (o que eu gosto de pessoas com esperança!)

Aos ouvidos de quem abortou, estas frases só servem para minimizar a dor, é uma forma de dizer "esquece lá isso, já passou, bora lá voltar à vida normal". Lamento informar que ainda que continue de sorriso no rosto e de bem com a vida passei por dois abortos em pouco mais que meia dúzia de meses. Um aborto é muito mais do que a perda de uma criança, é a perda de um milhão de pequenas possibilidades. Isto é coisa para me fazer pensar em coisas em que nunca tinha pensado. E, garanto-vos, conheço-me muito bem e sei bem a capacidade de adaptação que tenho. Não sou de ficar a chorar pelos cantos, nem de ficar a lamentar o que passou. Mas, minha gente, eu não posso, nem quero, passar uma borracha em partes da minha vida, por muito difíceis que elas possam ser. Eu sou eu e as minhas circunstâncias, já Ortega y Gasset dizia.

Há dias dei comigo a recordar que pensei várias vezes ao longo da minha vida que poderia vir a ter dificuldade em engravidar (todas as mulheres pensam nisto, não?), mas nunca coloquei a hipótese de não conseguir levar uma gravidez até ao fim. 

3 comentários:

  1. Um filho que é desejado e, por isso, planeado deve deixar um grande vazio quando se descobre que não resultou...Acredito que na 2ªvez deve ter sido uma excitação descobrir que tinham conseguido... Gravidez, parto e amamentação são temas quase fraturantes hoje em dia, tal a quantidade de teses que por aí andam. Não há nada que valha tanto quanto a empatia de quem nos quer sem reservas, o ânimo e a energia positiva dos que nos estão próximos... E só o futuro dirá o que, enquanto casal, podem vivenciar! Boa sorte e pouco stress, sempre ouvi dizer que não ajuda nada...

    ResponderEliminar
  2. As pessoas, benza-as Deus, conseguem ser muito estúpidas! Só quem passa pelas coisas sabe o que que custa, por isso mais valia as pessoas absterem-se de comentar coisas que desconhecem.

    ResponderEliminar
  3. Infelizmente as pessoas nunca medem o que vão dizer...talvez por acharem que as suas (sábias) palavras vão resolver tudo. Quero crer que na maior parte das vezes nem sequer dizem essas coisas com maldade...mas lá que custa muito ouvir, custa. Estou a passar por um período também difícil, mas de não conseguir engravidar. Já lá vão 6 anos. E ainda ouço pérolas deste (e de outro) género! Quando ouço "tens de ter calma e não pensar nisso" ou "quando deixares de querer vai acontecer" ou ainda "isso é de seres ansiosa", além de por breves momentos acreditar que a culpa está nestas minhas particularidades, penso também que, se fosse esse o problema tudo se resolveria com ansiolíticos e não com tratamentos de fertilidade complicadíssimos e caros. Tenho acompanhado o que escreves com um nó na garganta e a torcer por ti. Um beijinho

    ResponderEliminar